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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Um dilema no fundo do mar - voo 447

A descoberta de corpos das vítimas do voo Air France 447, a 3,9 quilômetros de profundidade, divide as famílias: vale a pena resgatar os mortos?

O procurador federal Carlos Eduardo Lopes de Mello casou-se com a médica Bianca Machado Cotta em 30 de maio de 2009. Na noite seguinte, embarcaram em lua de mel para Paris. Eram dois dos 228 passageiros do voo 447 da Air France, que saiu do Rio de Janeiro e caiu no Oceano Atlântico. Maria Esther Lopes, mãe de Carlos, espalhou pela casa fotos e pôsteres do casal e se convenceu de que, nos últimos dois anos, eles simplesmente continuaram em lua de mel. Até que há duas semanas a história que ela havia construído para si foi abalada. Depois de quase dois anos de investigações, o Escritório de Investigações e Análises (BEA) da Aviação Civil da França encontrou as caixas-pretas do avião. Na tentativa de esclarecer o acidente até hoje inexplicado, acabou por encontrar algumas das vítimas. Corpos conservados pela água a -2 graus célsius, a 3.900 metros de profundidade. No dia 5, um passageiro afivelado à poltrona foi içado sem muitos danos. No dia seguinte, restos mortais de um segundo corpo não resistiram à operação de subida. O que é melhor, trazê-los de volta à terra ou deixar onde estão? A pergunta divide as famílias das vítimas.

Uma imagem de Carlos Eduardo Lopes de Mello e Bianca Machado Cotta no apartamento da mãe de Carlos, Maria Esther (sentada). A família não quer o resgate


“Foi um choque saber que o governo francês retiraria os corpos”, diz a nutricionista Sylvie Lopes de Mello, irmã de Carlos. “Reabriu e expôs uma ferida que não estava cicatrizada.” As famílias de Bianca e Carlos são contra o resgate. “Não sabemos o que vão nos entregar, o que vai sair do fundo do oceano. Preferimos conservar a lembrança que temos deles”, diz Sylvie.

A posição não é unânime. Familiares de pelo menos 30 vítimas brasileiras exigem os corpos de seus entes, a despeito de quanto isso possa custar em tempo e dinheiro. “Quero enterrar meu filho com dignidade”, diz Nelson Faria Marinho, presidente da Associação dos Familiares das Vítimas do Voo Air France 447. “Discutir o estado dos corpos é irrelevante. É preciso resgatá-los.” O empresário Dirk Peter quer de volta o corpo de seu irmão mais novo, Matthias. “Quero tirá-lo do lugar onde ele passou o pior momento de sua vida.”

Encontrar corpos em bom estado de conservação foi um desdobramento inesperado da ambiciosa operação para esclarecer as causas do acidente com o voo 447. O governo francês estima ter gasto € 28 milhões na busca aos destroços do avião. Só a recuperação das caixas-pretas, içadas no início do mês, consumiu € 6 milhões. O valor aumentará conforme o total de corpos resgatados.

A operação é um esforço da indústria aérea para não cometer duas vezes o mesmo erro. Há inúmeros casos de fabricantes forçados a mudar componentes ou projetos de suas aeronaves devido a conclusões apresentadas nessas investigações. Em 1985, em Dallas, um avião com 163 pessoas caiu durante o pouso no Aeroporto Forth Worth – 134 morreram. A investigação revelou que uma repentina formação de ventos cruzados, em várias direções, fez o avião ziguezaguear e despencar em poucos segundos. O trabalho durou sete anos e envolveu a Nasa e a Administração de Aviação Federal (FAA) americana. O resultado foi a criação de um radar de bordo que se tornou padrão em 1994 e, desde então, apenas um acidente semelhante ocorreu. É caríssimo descobrir a causa de um acidente aéreo, mas compensa. A divisão de responsabilidades e indenizações fica esclarecida, e a solução do defeito evita acidentes e prejuízos futuros.

Resgatar os corpos das vítimas é de pouca utilidade na investigação, mas, uma vez encontrados, é moralmente discutível abandoná-los. Quando anunciaram a descoberta dos restos mortais, as autoridades anunciaram que buscariam o maior número possível de vítimas. Diante da dificuldade para içar os corpos mantendo seu estado de conservação, os magistrados do Tribunal de Grande Instância de Paris, responsáveis pelo processo do acidente, decidiram que o resgate seria seletivo. “Tiraremos somente aqueles que pudermos, decentemente, entregar às famílias, com a condição de que possam ser identificados”, escreveram os juízes Silvie Zimmerman e Yann Daurelle em carta aos parentes. Na última quinta-feira, houve uma nova mudança de diretriz. “Se não for possível extrair o DNA e identificar os corpos, as buscas serão encerradas”, afirmou Jean Quintard, procurador adjunto do caso.

No caso de desaparecidos políticos ou soldados dados como mortos em guerras, encontrar o corpo do ente querido é encerrar um ciclo. Significa desistir, de uma vez por todas, da esperança de ver a pessoa entrar pela porta da sala. No caso do voo 447, o valor simbólico dos restos mortais é um pouco diferente. Com a confirmação do embarque dos passageiros no Rio de Janeiro e a queda no mar, a 1.100 quilômetros da costa brasileira, não há dúvida sobre a morte de todos a bordo. Ainda assim, a ausência do corpo dificulta o luto de muitos parentes. “A família precisa da prova concreta da morte”, afirma o psiquiatra e psicólogo Sergio Perazzo, professor da Sociedade de Psicodrama de São Paulo. “As situações em que o corpo se desintegra são difíceis de trabalhar.”

Quem melhor estudou o comportamento do homem diante da morte e do cadáver foi o historiador francês Philippe Áries (1914-1984). Em um de seus livros, História da morte no Ocidente, ele mostra as transformações intensas na forma de lidar com a morte ao longo dos séculos. Em culturas como a egípcia, os corpos eram embalsamados para sua passagem. Na Grécia Antiga, surgiram túmulos de pedra, prática comum no império romano.

Áries afirma que a morte, como uma espécie de animal selvagem, foi domada ao longo do tempo. Na Idade Média, a partir do século XII, a relação com o fim da vida se dava de maneira natural, familiar e sem questionamentos. As pessoas se preparavam para a morte e morriam em casa. O moribundo no leito, rodeado por seus parentes e amigos, cumpria as formalidades funerárias. Entre os séculos XII e XVII, a Igreja Católica começou a separar pagãos e fiéis. Cemitério e templo passam a significar a mesma coisa, pois os fiéis eram enterrados junto a templos de santos. O culto a sepulturas e cemitérios se torna mais intenso entre o século XVIII e a primeira metade do século XX. Uma revolução dos costumes e das relações familiares substituiu a indiferença com a morte pela demonstração final de afeto.

Os restos mortais têm papel central em todas as religiões – e há casos dramáticos de busca e recuperação por corpos. Em 2008, durante um dos conflitos na Faixa de Gaza, palestinos e libaneses negociaram a troca de 199 corpos de mortos em combate e cinco soldados vivos pelos corpos de dois israelenses. No Exército americano, trazer de volta para casa os corpos de soldados mortos é um lema das Forças Armadas: “No man left behind” (Nenhum homem deixado para trás). Em 2009, antropólogos das forças dos Estados Unidos escavaram um terreno em Bauler, na Alemanha, atrás dos restos mortais dos pilotos de um bombardeiro americano que caiu no local durante a Segunda Guerra Mundial.

Poucos episódios recentes de resgate de mortos foram mais marcantes que o do submarino nuclear russo Kursk. A embarcação de 154 metros de comprimento, 18 metros de largura e 18.000 toneladas de peso naufragou em agosto de 2000, com 118 militares a bordo, no Mar do Norte. O governo russo rejeitou ajuda internacional para resgatar possíveis sobreviventes. Depois de um ano, os corpos foram retirados e entregues aos familiares.

A presença dos restos mortais faz parte de um período de passagem necessário para que parentes possam aceitar a perda. “Os rituais do velório são importantes para que as pessoas façam as últimas despedidas”, afirma a psicóloga Maria Júlia Kovács, coordenadora do laboratório de estudos sobre a morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Renata Mondelo sentiu isso quando encontraram o corpo de seu marido, Marco Antonio Mendonça, em junho de 2009, no litoral brasileiro. Ele era um dos passageiros do voo 447. “Eu dizia para mim mesma que ele sabia nadar, poderia ter sobrevivido, achava que ele iria aparecer na porta de casa a qualquer momento”, afirma Renata. “Depois do velório e do enterro, senti que acabava uma etapa da minha vida, e eu precisava começar uma nova.” Etapa essa que muitas famílias de vítimas querem superar – mas não sabem se vão conseguir.



Repórter: Rodrigo Turrer
Revista Época – 16/05/2011



(Selma)

2 comentários:

  1. Isso me fez lembrar da orientação de Jesus, o de deixar os mortos enterrarem os mortos, bem diferente da prática católica de prestar homenagem para aqueles que se ferraram em toda Santa Missa, baseado no mote de Jesus de fazer com o semelhante aquilo que você esperaria dele.

    Ou seja, não há dilema algum aqui. Enterrar os mortos sempre foi um bom negôcio, pelo menos lá na Paróquia, isso entope a agenda do padre, da floricultura e da turma que faz paletós de Madeira. Ou seja, os mortos garantem o pleno emprego e a reduz a capacidade ociosa.

    Alias toda a nossa vida se reduz em gastar com presentes e lembranças com os vivos, por que haveria de ser diferente com os mortos? Na época de Jesus faz sentido abandonar os mortos, mas hoje grana é que não falta, principalmente agora que a turma aprendeu a arrombar as caixas eletrônicas.

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  2. No caso dos parentes dos mortos nesse vôo,assim como no caso dos parentes de todos os falecidos em condições misteriosas,em acidentes,e tudo o mais, - acredito que ver os mortos, é importante para confirmar que morreram.

    Pois a mente das pessoas se apegarão,naturalmente,até às últimas consequências,à esperança de que o ente querido está vivo.
    Porque,de repente,poderia estar mesmo.
    Poderia ter escapado à tragédia,mas estar em algum lugar,sem a memória anterior.

    Eu que não queria estar no lugar dessas pessoas- que foram privadas da esperança no bem e na justiça do acaso- por ver seus parentes tão felizes e de bem com a vida- e com tanto a colaborar ainda,
    morrerem desse jeito.

    Enquanto tantos por aí que não precisavam estar no mundo, terão uma vida longa.
    Sei que o comentário foi dantesco,me desculpem.
    Os que não "precisam tanto de vida assim" naturalmente são os criminosos - e os criminosos de colarinho branco.

    Até breve a vcs.

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