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sexta-feira, 18 de março de 2011

Quem é o Diabo?

Ele aparece no dicionário Aurélio com 119 sinônimos. No Houaiss, há 136. O escritor Guimarães Rosa tinha sua coleção particular: Azarape, Arrenegado, Cramulhão, Indivíduo, Galhardo, Não-Sei-que-Diga, O-que-Nunca-se-Ri, Sem-Gracejos. São 29 passagens sobre ele nos Evangelhos, 25 delas citado pelo próprio Jesus. E o filósofo Jean-Paul Sartre dizia que "o inferno são os outros". Mas, venhamos e convenhamos: afinal de contas, quem é o Diabo? Onde ele habita? Estará em franca falência ou flamejante coroação?



A discussão sobre a topografia da Besta e de sua morada perpassa milhares de anos. Freqüentam vulgatas que vão da ciência à religião, passando por comportamento, psicanálise e mesmo arte. Questionando a Bíblia como ninguém, o fílósofo Bertrand Russell gostava de dizer que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança. Num lugar, fez um senhor de barbas, noutro, fez dele o Sol. Se assim pensarmos, o Diabo vai pelo mesmo caminho: num mundo com tantas informações disponíveis, cada um constrói seu Satanás. É o Diabo à la carte. No mundo dito pós-moderno, a ordem é: faça você mesmo o seu Satã.
E não terá sido essa a eterna escolha dos escritores? Talvez sim. O pai do romance gótico, E.T.A. Hoffman, pôs o Tinhoso em suas obras, ora num doutor milagreiro, chamado Dapertutto, ora no sinistro Coppelius, que sonhava em arrancar os olhos das criancinhas. Robert Louis Stevenson achava que cada um tinha o diabo escondido dentro de si, e o dele era o Mr. Hyde (trocadilho com "hide", esconder em inglês), que volta e meia engolia o pacato Dr. Jekyll.

Hermann Melville via o Satã na baleia branca Moby Dick, e Edgar Allan Poe também achava que o Senhor das Trevas não estava no escuro, mas na alvura da luz. O psicanalista Jacques Lacan notava que muitas vezes a figura do "estrangeiro", portanto, do desconhecido, pode nos servir como imagem do Demo.


Nosso Machado de Assis talvez tenha sido mais profundo que os anteriores. Em seu conto "A Igreja do Diabo", Satã desce à Terra e descobre que as maldades ensinadas em seu templo estão sendo desrespeitadas. Os homens estão praticando virtudes às escondidas. "Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias", escreve Machado. No final, o Diabo volta aos céus. E Deus lhe consola: "Que queres tu? É a eterna contradição humana".


E hoje, qual o papel do "príncipe deste mundo" (João 12.31) e "pai da mentira" (João 8.44)?
 Desde o Iluminismo, ele deixou de ser uma entidade e passou a ser interpretado como o lado obscuro de cada um. Mas, para o teólogo e pastor batista Fernando Fernandes, ele continua atuante. "Em termos práticos, o Diabo é o fomentador de desordens morais, sociais e espirituais, influenciando as pessoas para a corrupção, para os vícios, para as orgias sexuais, para a exploração social e toda a sorte de atrocidade que atenta contra a integridade do ser humano e contra a espiritualidade sadia e benfazeja que o homem carece experimentar", diz o pastor.

E há também a Bíblia Satânica. Essa eclética coleção de ensaios, comentários e rituais básicos do satanismo é best seller desde que foi lançada em 1969 pelo malucão americano Anton Szandor LaVey (nascido Howard Stanton Levey). Tinha tudo a ver com a época, quando rebeldia, contestação e crenças misteriosas estavam em alta no mundo todo. As primeiras edições do livro, em capa dura, chegam a valer 1000 dólares no site de vendas eBay. Mas, apesar de inspirar centenas de hinos do metal, festas de faculdade, tatuagens e até a Igreja de Satã, com sede em San Francisco, na Califórnia, o livro não é levado a sério. Os teólogos a consideram uma brincadeira do mal (ou mau gosto).

O Diabo nas religiões
Judaísmo
No judaísmo, Satã não é exatamente o Coisa-Ruim. A ele cabe pegar no pé da humanidade, apontando nossas falhas. No livro de Jó, ele age como promotor da divina corte, angariando provas de que o homem não merece o amor do Criador. Ele também dá uma mão na construção do bezerro de ouro que os israelitas adoram enquanto Moisés está no Monte Sinai. De qualquer forma, a Torá afirma várias vezes que foi Deus quem criou o bem e o mal.

Catolicismo
Até o início do século 18, a oração de Pai-Nosso dizia "livrai-nos do Demônio". Hoje os católicos pedem simplesmente que Deus os livre "do mal", mas isso não quer dizer que a existência do Diabo tenha sido totalmente abolida das encíclicas papais. Já a presença de Lúcifer no Inferno, torturando almas de pecadores, é uma criação da literatura cristã medieval, pois a Bíblia diz que o Diabo anda solto pelo mundo.

Espiritismo
Os Espíritas não acreditam em um ser do mal, tão poderoso quanto Deus. Acreditam em espíritos obsessores que influenciam os atos dos humanos para o mal.

Islamismo
No Islã, Shaitan não tem poderes, apenas fornece más idéias para quem lhe der ouvidos - e todo o mal que fazemos é por nossa escolha. Ele foi expulso do paraíso por não louvar Adão, desobedecendo Alá. No Corão, Satã é inimigo da humanidade, já que Alá é supremo. O "jihad", banalizado pelos terroristas, é a luta contra os desmandos de Shaitan.


Budismo
No budismo não existe Diabo, mas há um sujeito diabólico: Mara. Ele tentou Gautama Buddha, oferecendo-lhe lindas mulheres (em algumas versões, suas próprias filhas). Ele tira a atenção dos homens da vida espiritual, fazendo as coisas mundanas atraentes e procurando transformar o negativo em positivo. Outra interpretação é de que Mara representa os desejos em nossa mente que nos impedem de ver a verdade, uma parte ruim nossa que deve ser derrotada

Hinduismo
Em contraste com as tradições judaico-cristã e islâmica, o hinduísmo não especifica nenhuma força maléfica central, mas reconhece que as pessoas podem realizar atos de maldade quando dominadas temporariamente por entidades conhecidas como asuras. Rahu teria uma característica mais próxima do Diabo dos cristãos, se bem que Vishnu encarna para destruir o mal quando ele se torna muito forte.

Religiões Afro
Na religião iorubá original, Olodumaré é a fonte suprema de tudo, inclusive do bem e do mal. O Diabo, portanto, como força contrária a esse equivalente do Deus monoteísta, não tem lugar. Exu, mesmo identificado com atitudes classificadas de "más" pela moral cristã, é um orixá, ou seja, foi criado por Olodumaré, então nunca atuaria contra os seus princípios.


O filósofo Michel Foucault foi o primeiro a teorizar sobre a divisão social entre "loucos e sãos" (ou "possessos e limpos"). Com o fim da lepra na Europa, os leprosários estavam condenados à extinção. Para manter instalações e empregos, nada mais prático do que arrumar novos inquilinos. Nasce a casta dos loucos, volta e meia ampliada com as "vítimas de possessão demoníaca".
Essa interpretação chegou aos tribunais brasileiros. Guido Arturo Palomba, mais famoso psiquiatra forense do Brasil, afirma que epilepsias psicóticas "sempre entravam nos processos como possessões". Basta examinar a origem da palavra: epilepsia é "ep" (acima) mais "lepsis" (abater). "Os antigos acreditavam que era alguma força que vinha por cima e abatia o indivíduo", diz Palomba.


O psiquiatra relata um caso exemplar. Uma mulher foi com uma amiga a uma loja de umbanda. Conheceu um homem. As duas, mais ele, vão para uma casa. Fazem um ritual de macumba. Uma das mulheres entra em transe e incorpora a entidade Pombagira. Pega uma faca e desfere um golpe contra o homem. Sai do transe e tenta acudi-lo. Ele morre. A assassina diz que nada lembra e não tem culpa: quem matou foi a Pombagira. Apesar de todas as alegações de possessão demoníaca, a prova final foi dada com eletroencefalograma. A assassina era epilética, dona de disritmia em estado crespuscular, em que padecia de atos semi-automáticos, sempre com amnésia. A ciência também exorciza.




(Revista Galileu - Edição 197 - Dez de 2007)
Bibliografia: • "Satã: uma Biografia", Henry Ansgar Kelly. Ed. Globo. 2007
                    • "A História do Diabo", Vilem Flusser. Annablume. 2005



(Selma)

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